“A morte é um dia que vale a pena viver” é o título da palestra que tornou a dra. Ana Claudia Quintana Arantes conhecida do grande público. O vídeo dessa palestra, que tem o formato de TED Talk, tem quase três milhões de visualizações no YouTube. Essa mesma palestra foi transformada em livro, que já está na segunda edição pela editora Sextante – e permanece entre os mais vendidos e recomendados desde a primeira edição, em 2016.
Ana Claudia Quintana Arantes é médica formada pela USP, com residência em Geriatria e Gerontologia no Hospital das Clínicas da FMUSP. Fez pós-graduação em Psicologia – Intervenções em Luto, pelo Instituto 4 Estações de Psicologia, e especialização em Cuidados Paliativos, pelo Instituto Pallium e pela Universidade de Oxford. Sócia-fundadora da Associação Casa do Cuidar, Prática e Ensino em Cuidados Paliativo, atualmente atua como docente da The School of Life e da Casa do Saber, ministrando as aulas “Como lidar com a morte” e “Como ter melhores conversas”.
Nesta entrevista, ela defende que precisamos conversar sobre a morte de forma a lidar melhor com o luto e viver melhor. Não deixe de conhecer a íntegra desta entrevista no Podcast Folha Espírita, que tem como título A morte é um dia que vale a pena viver, disponível no Spotify, Google Podcast, Apple Podcast e nas principais plataformas.
Folha Espírita – A sua apresentação no TEDx da Faculdade de Medicina da USP, em 2013, que teve como tema “A morte é um dia que vale a pena viver”, conta hoje com quase três milhões de visualizações. O seu livro, que leva o mesmo título, é um sucesso de vendas. Por que que você acha que esse assunto atrai tanto público, desde profissionais da saúde até o público leigo?
Ana Cláudia – Todo o trabalho da Medicina é voltado para evitar a morte, e eu penso que deveria ser garantir uma vida boa, que vale a pena viver, mas a gente tem milhares de procedimentos, técnicas, intervenções e tratamentos para adiar o dia da morte. Sofri resistência, inclusive, de uma editora para lançar o livro com este título, e eu disse, na época, que a capa do livro é uma triagem para quem tem coragem de ter uma vida que vale a pena viver. Para você ter coragem de ter uma vida que vale a pena investir, tem que entrar na sua cabeça que você morre e, aí sim, você vai entrar no eixo de consciência de uma vida que vale a pena você desenvolver ao longo do tempo que você está aqui.
FE – A morte é um tabu ainda?
Ana Cláudia – Tabu diz respeito a temas para os quais você tem escolha. Então existe o tabu do sexo, da sexualidade, das drogas, do casamento, do feminino, do masculino. Para a morte, não há escolha. Não tem essa de “eu sou contra”, ela deve ser encarada de frente. Não tem essa discussão se eu morrer, mas, sim, como vai, você não é ninguém na fila do pão para dizer “não quero morrer”. Nesse sentido, precisa haver uma mudança na Medicina e nos profissionais da saúde. A Medicina tem essa coisa do cuidar e achar que vai curar sempre, isso não existe. É necessário mudar, conversar sobre a morte, não vejo nenhuma forma de mudar uma sociedade, de mudar uma cultura que não seja pela educação. Precisamos falar sobre o fim de vida. Estou numa força tarefa hercúlea de levar essa necessidade do aprendizado sobre os cuidados paliativos para os médicos, para que na faculdade de Medicina tenham acesso a esse conhecimento, ao menos do discernimento do que pode ser feito, da identificação do paciente que se beneficia deste trabalho, uma abordagem que visa promover o alívio do sofrimento. Não é só no fim da vida que a gente sofre; os pacientes sofrem desde o momento em que têm um diagnóstico, sofrem durante todo o trajeto de uma enfermidade. Eu presido uma instituição que oferece esse aprendizado, que é a Associação Casa do Cuidar, Prática e Ensino em Cuidados Paliativos. Esse movimento de disseminação e ensino dos cuidados paliativos começa na ponta errada, que é a pós-graduação, o que torna um baita trabalho desestruturar todos os conceitos que foram colocados na mente desse médico que acha que pode tudo e que “no meu plantão ninguém morre”.
FE – Sobre a questão da educação e o comentário anterior de que a gente não tem como discutir se vamos ou não vamos morrer, O Evangelho segundo o Espiritismo ensina que se pudéssemos olhar para a vida como se ela fosse infinita, mudar o nosso ponto de vista entendendo-a como eterna, muitos dos nossos sofrimentos seriam diferentes, inclusive a nossa maneira de lidarmos com a morte. Você acha que quando a gente compreender e discutir mais sobre a morte, a gente vai se aproximar dessas conquistas da alma, tornando a nossa vida mais leve e diferente?
Ana Cláudia – Penso que com a dor a gente tem uma percepção mais crítica da eternidade. Pode reparar que quando você está muito alegre, muito feliz, quando você fica sozinho, você pensa: “ai, Meu Deus, tô até com medo que isso acabe”. Vamos pegar o exemplo dessas pessoas que estão agora com uma dor do luto, que não estão nem com energia de escutar, que estão agora em cima da cama, sem tomar banho, sem comer, querendo a morte, inclusive… Quando a gente está nesse sofrimento, temos a falsa noção de eternidade, é a noção que essa dor não vai passar. A nossa noção de eternidade é uma noção de eternidade do sofrimento, as pessoas não sabem lidar com isso porque a experiência concreta que nós temos de perceber a verdade da eternidade é na dor: essa dor não passa, o medo não passa, a angústia não passa, essa fase difícil da minha vida não passa, daí parece que ela é eterna. Tenho uma visão muito clara de que estamos aqui para aprender. Esse corpo é um uniforme para este aprendizado. Entramos aqui no pré-primário, o seu corpo é o seu uniforme para você frequentar as aulas nessa dimensão. Quando você morre é porque você pegou o diploma. Pode pegar o diploma aos 28 anos? Sim. Pode pegar o diploma quando recém-nascido? Sim, depende em que curso você se matriculou.
E nós não amamos o suficiente a ponto de perder as pessoas. Se a gente amasse o suficiente, a gente poderia perder porque tudo teria sido dito, tudo teria sido demonstrado, teria perdoado, teria sido feito tudo da melhor forma possível. Mas como a gente não ama o suficiente, a gente não consegue perder. Aí você sempre tem aquela sensação de que faltou viver alguma coisa no passado. É totalmente saudável uma dor do processo de luto em relação ao que você vai viver no futuro, no estilo “puxa, minha mãe não vai ver minha filha se formar”, mas eu não posso dizer “se eu tivesse viajado com a minha mãe…” Você precisa ter uma dor da perda de futuro, isso é legítimo.
FE – Temos inúmeras pesquisas de universidades em todo o mundo sobre as experiências de quase morte e as visões no leito de morte. A ciência já não teria indícios suficientes para acreditar na vida após a morte? Aliás, você acredita na vida após a morte?
Ana Cláudia – Temos evidências de continuidade do processo de consciência, evidência de que a consciência permanece, apesar da morte. Com relação a eu acreditar em vida após a morte, vou te responder como faço com todo mundo: não é da minha conta. Se tem vida depois da morte, eu estou bastante ocupada aqui para não precisar desperdiçar meu tempo de vida pensando no que vai acontecer depois, porque não é da minha conta, não é da minha alçada, tem gente responsável por isso. Se eu estou nesse envelope, com esse uniforme, minha alma aqui neste mundo tem um propósito de aprendizado e vou me ocupar disso. Vou viver aquilo que é que considero como uma experiência humana valiosa para minha alma aqui, esse é o meu propósito, fazer o melhor agora. Então essa a visão da vida depois da morte precisa ser um pouco mais madura. Vamos combinar que não tem essa história mais de você desperdiçar tempo tentando entender o pensamento de Deus, não temos software para isso, como Deus pensa não é da sua conta e Ele é quem sabe, porque não tem ninguém mais competente que Ele.
FE – A dra. Elisabeth Kübler-Ross, pioneira do movimento de cuidados paliativos na Inglaterra, traz uma reflexão em que deveríamos discutir sobre a morte com as crianças ainda em tenra idade. Você acha que essa prática ajudaria as pessoas a lidarem melhor com a morte na fase adulta? Como que nós poderíamos introduzir esse aprendizado sobre a finitude das vidas com as crianças?
Ana Cláudia – A gente já nasce sabendo lidar com a morte; as crianças sabem lidar com o sofrimento e com a morte muito melhor do que os adultos. Nós desestruturamos a sabedoria nata do ser humano com a nossa educação ocidental. Então você poupa a criança do adoecimento e morte da mãe, por exemplo. E quando isso acontece, elas vão precisar do suporte ao luto quando adultos. Tenho pacientes de 40, 50 anos que perderam a mãe quando tinham 5 anos e até hoje não se deram conta disso, porque alguém na família decidiu que as crianças não podem ir ao funeral, as crianças não podem saber que o amado delas está morrendo. Você quer saber como a criança pensa, vai no quintal de casa, procura uma minhoca morta e pede para ela contar a história dela, ou de uma folha que caiu e está lá sequinha. A natureza está aí para ensinar, aprenda com a natureza, essa condição de cegueira é absurda, pois se fecha os olhos para o óbvio: a criança sabe intuitivamente o que é a morte.
Há um estudo interessante feito com recém-nascidos e outro com bebês com 14 meses. Se um recém-nascido escuta o choro de um outro recém-nascido, ele chora. O outro com crianças de 1 ano e 2 meses, mostra que se um bebê chora, o outro vai andando em sua direção para ver o que está acontecendo, é muito bonito. Mas você vai no shopping passear com seu filho e uma criança no carrinho chora, ele quer ir lá e você fala “não, ele tem mãe, deixa, não é problema seu”. Daí a gente cresce achando que a pessoa que sofre não é só um problema nosso. A gente já veio com a compaixão instalada de fábrica, a visão compassiva do sofrimento do outro e que você pode ajudá-lo a superar. Uma criança de 1 ano e 2 meses não tem pós-graduação em Psicologia, não sabe Medicina, não é voluntária nem religiosa, mas sabe disso intuitivamente, só que a nossa educação desestrutura, desensina.
FE – Voltando agora para o assunto do momento, a pandemia. Você vem desenvolvendo vários cursos e conversas sobre a morte nos últimos anos. A procura aumentou nos últimos tempos?
Ana Cláudia – Sim, as pessoas querem ouvir, querem um espaço seguro para conversar sobre a morte. Quando você busca este contato no momento em que você não está em sofrimento, você transforma a sua vida em algo mais leve porque você já falou sobre a parte mais difícil, todo o resto fica mais fácil. Por isso que é importante você falar sobre o fim da vida: as coisas que vão ficar muito mais fáceis de serem resolvidas quando você olha para sua morte. A morte não pode ser vista como uma saída, se você pensa na sua morte como uma saída, você precisa de ajuda, de terapia. A morte é uma não condição absolutamente protetora da vida, não é ameaçadora. Ela protege a vida porque põe um limite. Toda mãe que põe limite educa melhor. Então, a morte protegendo a gente, protegendo a nossa vida com este limite, faz com que a gente se realmente se dedique para aquele aprendizado dentro da vida. As aulas na escola da vida têm começo, meio e fim. Então todo sofrimento que você está passando vai passar também, porque nenhum dia, por mais difícil que seja, dura mais de 24 horas. Então se hoje está muito difícil, ele vai virar ontem, semana passada, ano passado, quando eu era pequeno e assim por diante.
FE – Que conselhos que você daria para as pessoas que estão vivendo um luto neste momento? Não são poucas as pessoas que se foram, e os familiares não estão tendo tempo de se despedir.
Ana Cláudia – Não há o que ser dito. Nós precisamos fazer silêncio, sustentar nossa presença e a nossa companhia. É compaixão, é você estar ao lado e oferecer o teu coração como fonte de apoio. E para você oferecer o teu coração como fonte de apoio, teu coração tem que estar leve. Então talvez o meu pedido vai para quem não perdeu ninguém nesta pandemia: não abuse da sorte se arriscando nem arriscando alguém que você ama. Quem não perdeu ninguém é quem vai poder ajudar de fato as pessoas que estão vivendo esse processo, porque que não há palavra que possa aliviar essa dor.
FE – Você sempre diz que morremos só uma vez e que a gente não pode dar vexame. O que quer dizer com isso?
Ana Cláudia – Tem muita gente que acredita na vida depois da morte, aí eu digo para essas pessoas que nesta vida aqui, eu, como Ana Cláudia, só tenho essa. Pode ser que meu Espírito tenha vindo um monte de vezes antes, venha um monte de vezes depois, mas, como eu disse, não é da minha conta, pelo menos não da minha consciência. Como Ana Claudia, eu só vou morrer uma vez, então a gente tem que se preparar para isso. Você não pode dar um vexame na última festa da sua vida, porque a sua morte é sua última festa, você não pode estar despreparado e passar vergonha. Você já foi um casamento vestindo shorts? É um vexame… As pessoas olham o céu, veem as nuvens pretas e falam assim: “nossa, vai chover”, mas não levam guarda-chuva! Está trovejando, aquele clima pesado, você olha isso e fala que não, vai dar tudo certo, Deus vai me ajudar e não vai chover… Isso é vexame! Outra coisa que é vexame: as coisas estão acontecendo com você, você fica fazendo um monte de orações pedindo para Deus mudar de ideia… É como estivesse dizendo: “o Senhor se enganou, não era comigo, essa conta veio errada, em endereço errado, vou devolver para o remetente”. Deus não erra! Se está acontecendo com você, a conta é sua! Não é uma fatura que vai ser paga, mas é uma conta que vai ser vivida. Então quando eu fizer oração, peça a Deus a gentileza de oferecer os parâmetros necessários de apoio, peça que a Misericórdia Divina possa te dar condições de passar por isso, de você sair pela porta da frente e cumprir a sua missão na Terra. Você precisa ter coragem para seguir em frente e se responsabilizar pela diferença que você vai fazer no mundo! A gente tem que ter consciência de que nós temos que fazer esse mundo melhor depois que a gente passar por ele!
Fonte: A morte é um dia que vale a pena viver